Acordem! Vamos viajar.
E saíamos as quatro cambaleando de sono, para mais uma aventura em família.
Bons, aqueles tempos de criança, quando nem imaginávamos quão grande seriam as dores das perdas, de vidas vivas, ou mortas. Como seria romper aquele emaranhado de cordões umbilicais, e acordar não encontrando um dos membros no ninho.
Ser filha de dois espíritos de aventura não foi difícil, e trago isso muito forte no meu DNA, que ama malas nas costas e rodas nos pés.
Muitas foram as partidas naquela Rural, azul e branca, para muitos destinos diferentes…lotada de tudo o que fosse necessário para nossa sobrevivência, desde a tradicional farofa, alimentos liofilizados, medicamentos e é claro, algumas armas e muita munição. Vivíamos sempre prontos para uma guerra. A do meu pai era particular; responsabilidade e literal senso de proteção, de seu pequeno exército feminino, junto com uma voraz paixão pela soberania nacional. Acho que ele preferiria hoje estar mesmo morto, porque morreria de desgosto de qualquer forma. Era de extrema direita.
Mas lá íamos nós, muitas vezes só com nossos pijamas, e ainda dormindo, amontoadas no banco traseiro. A natureza é sábia, e sempre deu o remate apropriado para o encaixe.
Foram inúmeras as viagens mas, uma foi uma verdadeira aventura.
Nosso destino era Recife, mais precisamente Olinda! Deixamos o interior de São Paulo, onde vivíamos naquela época, com um sentimento horrível, de deixar tudo o que aprendemos a amar para trás. Esse sentimento sempre foi uma constante em nossas vidas…não demorávamos muito tempo em um mesmo lugar. E lá ficaram os amores de criança, as amigas inseparáveis, com juras e pactos, como; o de que, nunca nos casaríamos enquanto não nos reencontrássemos novamente. Pacto cumprido.
Levávamos na bagagem muita saudade, choro e a curiosidade, misturada a lembranças, de uma infância remota, vivida no novo destino.
Se nós tivéssemos que chegar lá, quando lá chegássemos, saberíamos como seria nossa nova história.
Seguíamos por além das curvas da estrada, esperando por um castelo, ou talvez apenas a continuação da estrada, que nos levava a lugares incríveis.
Atravessar a grande São Paulo foi assustador. Devagar iam surgindo as ruas, avenidas, praças, viadutos, e o medo coexistindo em silêncio, entre mendigos e arranha-céus. Eu tinha a sensação de que São Paulo, tinha insônia na madrugada e que durante o dia, aquela lentidão no transito, era puro sono. Era um amontoado de carros que eu jamais tinha visto, que nos induziam aos enganos de mão e contra mão. Desesperador. Perdemos horas dentro de…um grito! Olha! o pai da loira!
Minha irmã apontava para uma esquina, onde o pai de uma amiga, um tio querido, lá de onde havíamos saído; estava acompanhado de outra mulher aos beijos. Eu o fitei com tanto ódio e decepção que nunca mais esqueci a forma, como aprendi o que era traição.
Alcançamos a Dutra, precisávamos recuperar o tempo. Nosso pai era valente e incansável. Mesmo com os maiores temporais anunciados, e o céu todo tingido de cinza, ele não buscava refúgio, afinal, para que surja um arco-íris é preciso a chuva!
Parada na antiga Basílica de Aparecida, movidos pela fé e ponto. Lá não se faz turismo, você vai movido pela fé, vai rezar, pedir proteção. De quebra almoçamos, e passeamos um pouco pela cidade. Pra ser bem sincera , quem não vai pela fé, não aguenta o calor, e as subidas das ladeiras.
Uma breve sesta, embaixo de uma árvore frondosa e … não seguíamos a estrada apenas, íamos deixando a nossa trilha, por lugares cada vez mais distantes do ponto de partida. Meus pensamentos eram verdadeiras declarações de amor à natureza, e agradecimento pelos visuais de belas praias e montanhas. Foi a primeira vez que eu vi o Dedo de Deus .
Hora de parar e procurar um lugar para dormir. Sem reservas e vouchers!
Já estávamos lá pelos confins das Minas Gerais, na Rio-Bahia, em uma cidade chamada Teófilo Otoni, e todos exaustos. A nossa resistência havia sido testada aos extremos. Só precisávamos de banho e um colchão. E mais uma vez aprendi uma nova lei: cuidado com o que pede!
Pois bem, fomos parar em um quase hotel-hospedaria, perplexos com aquele lugar hostil. De um cheiro horrível. Solução arranjada, com todos dormindo em um só quarto por segurança. Em colchões no chão! Por falta de um lugar para jantar, a solução, foi dividir um queijo curado, que nosso pai, pacientemente fatiava e nos servia. Noite horrível com nossa mãe gemendo de dor, por um corte profundo no pé, sofrido na hora do banho. Um tamanco, insistia em bater no nosso teto quase a noite inteira, e se não fosse por um toque de silêncio, dado de um modo nada sutil, por certo não teríamos dormido. Ao acordar e perceber que o dia não era tão claro por lá, ficou esclarecido que aquele cheiro horrível, era proveniente das mineradoras próximas. Não menos encantador, ver todo aquele movimento de trilhos e carrinhos carregados de minérios.
Disputa pelas janelas e nova partida! Nosso porto seguro no comando e direção. Seguíamos, ansiosas pela travessia do Rio São Francisco, e emocionante foi a chegada ao velho Chico, que desde a Canastra, vinha banhando aquele sertão. Quanto desejo de pular em suas aguas, mas sabia que elas ião dar no mar. E era pra lá que eu ia.
Chegamos ao nordeste, pelo sertão de Jequié, contornando as arestas das caatingas. Como paisagem, só couro de bode secando ao sol, e muitos jegues pastando. Mas com a máquina empunhada fazíamos nossas fotos em preto e branco, certos de que aquele cenário, era a mais pura sertanidade. Tantas coisas vimos naquele pedaço de chão. E fomos parando aqui, ali em Feira de Santana, até chegarmos em Salvador!
Imaginem, cinco mulheres insanas, recém saídas de um confinamento de já quase seis dias. Queríamos andar e andar…e foi o que fizemos, Mercado Modelo, Elevador Lacerda, Pelourinho e tudo o que tínhamos direito. Arriscamos até um vatapá quente. Ah! Bahia de São Salvador, eu ficaria dias subindo suas ladeiras, mas devíamos seguir. E depois de arrumar espaço para tantos souvenirs, partimos para Sergipe, onde fizemos uma parada muito rápida, em Aracajú. Mas, que nos sentamos ao pé do finado Gogó da Ema, ah! Isso sim.
Em poucas horas estávamos em Alagoas, e por força de uma grande amizade…mais uma parada, em Penedo, Nosso pai queria visitar a terra de um grande amigo militar, e levar seus recados aos familiares.
Lugar inesquecível, e marcado por mais um encontro com as margens do rio São Francisco.
Cortamos pelas entranhas do estado, para encurtar a viagem que já durava sete dias, e ninguém aguentava mais tanto contato físico. Nosso pai e porto seguro, já demonstrava um certo cansaço, mas continuava ali, firme rumo ao destino que não tardou a chegar.
Olinda! Destino alcançado, e predestinado a exatamente dois anos, quando então faríamos a mesma viagem de volta!
Bate uma dor no peito quando penso no comandante da Rural azul e branca, e no nosso apertado ninho. Eu faria aquela viagem mil vezes!
Viver na estrada é bom!
AF
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