Naqueles anos de chumbo, que hoje me parecem mais de algodão, vivemos o movimento Cabeças.
Eram perfeitas aquelas tardes, sentados nos gramados de Brasília, todos juntos…filhos de candangos, de funcionários públicos e de militares. A música só confirmava a união que já existia nas escolas, nos poucos clubes e nas partidas de futebol. Brasília era assim, misturava com muita sinergia, o homem simples do campo, com o intelectualizado homem urbano. Todos crentes e sempre com pensamentos positivos quanto ao futuro do país, e de suas próprias vidas. Povo solidário!
Afinal, vivíamos na terra prometida. Capital da Nova Era que se anunciava, nos arredores de Brasília. Diziam da chegada de novos profetas, e que vinham para construir a nova civilização. Brasília tinha uma aura mística fantástica. Eu fui pessoalmente conhecer a Tia Neiva lá no Vale do Amanhecer.
Brasília era linda, apesar de inacabada. Na Asa Norte, tinha lá algumas Super Quadras e a UNB, que era o nosso point. A Asa Sul, já quase pronta, era o reduto do Funcionalismo Público, mais parecia uma Torre de Babel de sotaques. Era gente de todo lugar do país. Liderança…carioca! Era de praxe a moçada ser chamada por apelidos, e de alguns eu nunca me esqueci, como o Pedrinho Federal, Jajá, Iru, Piúba, Índio, China, Badú, Milfa, Pagú, Macê, Muringa, Chacal, Pingo e centenas de outros, e eu era a Morena.
Todo final de tarde, juntava a moçada embaixo dos Blocos (não morávamos em prédios) pra tocar, dançar, nos juntávamos a nomes hoje imortalizados, e os chegados a um cigarrinho do capeta, apertavam o seu, e ficavam ali sem incomodar e nem serem incomodados.
Reinava um certo silêncio, interrompido algumas vezes, pelo som de algum taco de Bet.
Outros encontros fazíamos, para ver o pôr do sol lá no Lago Paranoá. Quem conhece não esquece, é o mais belo. Deitavámos na grama da Ermida, e do outro lado da margem, podíamos ver toda a silhueta da cidade, desenhada e integrada ao entardecer, pelo sol que baixava lá pelas bandas do Cruzeiro. Uma enorme bola de fogo se formava no céu.
Aquela era a geração, que abria as portas para a Brasília do Rock, e já tínhamos o prazer, de ouvir nosso amigo Renato Russo, cantar lá no Cafofo ( boteco da EQN 407 ), como o Trovador Solitário, apenas com sua voz e violão. Ele me disse um dia, que ali ele extraía os personagens para as suas canções.
“E o desejo crescia, como tinha de ser”, e queríamos sempre mais música, mais liberdade, mais arte.
Depois de muitas tentativas de ocupação de espaços ao ar livre, enfim, foi feita uma gambiarra de luz, e nasceu o Movimento Cabeças. No começo era assim, meio multimídia, misturando pintura e música. Mas foi crescendo e quando já tinha gente escalando os combogós dos blocos, se separaram (segui a música). Os quadros foram para a W4 sul, e a música para a SQN 312 Norte, e depois para a Rampa do Parque da Cidade, Concha Acústica e aqui e ali até sumir no mapa.
Sem praia, a nossa alegria era aqueles encontros, íamos chegando um a um, de camelo (também chamado de bicicleta), fuscas, brasílias, e até a pé. Acreditem, haviam lá os que andavam muitos quilômetros, só para não perder o Cabeças. Pressentíamos que aqueles seriam grandes ídolos, e que aquelas músicas que até então só nos ouvíamos, seriam eternizadas. O Cabeças era o nosso movimento, sinérgico e livre, completamente livre.
Qualquer um de nós que quisesse ir ao microfone e cantar, declamar ou reclamar, poderia fazê-lo. Mas poucos, arriscavam incomodar nossos desconhecidos ídolos, como o Aborto Elétrico (que depois sem o Renato, virou o Capital Inicial), Oswaldo Montenegro, Maísa Gata Mansa, Jessé, Plebe, Liga Tripa, Beirão, Renato Mattos e muitos outros ilustres desconhecidos, que viriam a ser reconhecidos até internacionalmente.
Foram muitas as canções que ali ouvi, e que ainda hoje, quando vejo um jovem cantando, me emociono, e se fechar os olhos, posso sentir o chão e o cheiro do cerrado. Esses jovens nunca saberão, como era ouvir, a tentativa daqueles talentos em ver suas músicas reconhecidas, ali, no gramado, com uns intrumentos básicos (e sem dono), e sem direito sequer a retorno da própria voz.
Eu, Maria Célia e Norminha, não perdíamos um Cabeças! E fícavamos até o fim, cada uma com sua preferência. Meu predileto sempre foi o Renato Manfredini Junior (Russo) e vou contar um segrêdo: nutro por um deles, até hoje uma certa saudade.
A tarde caía, entre coros e silêncios, uns já deitados, pares formados, cabeças feitas, até por rococós. Geração Coca Cola!
E no compasso da música, junto ao sonho de abertura dos horizontes, pegávamos nossos camelos, e tomávamos os caminhos de nossa casa.
“Era melhor a gente não conhecer o que passou a chamar felicidade
Nenhum lugar e nada para falar o que ficou de nós dois pela cidade”
Brasília jamais mereceu o estigma de Cidade da solidão.
AF
EQN – Entre Quadra Norte
W4. – uma via de Brasília
UNB – Universidade de Brasília
SQN – Super Quadra Norte
Deixe um comentário